A venda de imóveis na planta é prática consolidada no mercado imobiliário brasileiro. Entretanto, falhas na redação contratual ainda geram disputas milionárias entre incorporadoras e compradores. A chamada “cláusula de tolerância”, frequentemente incluída nesses contratos, tem sido alvo de questionamentos judiciais quando mal interpretada ou aplicada de forma abusiva. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu contra uma incorporadora justamente pela má utilização desta cláusula, reafirmando que a sua validade não é absoluta e que falhas na redação podem gerar condenações expressivas.
1. O que é a cláusula de tolerância
A cláusula de tolerância permite que a incorporadora prorrogue, por até 180 dias, a entrega do imóvel sem que isso configure descumprimento contratual. Sua função é mitigar riscos decorrentes de fatores externos, como intempéries, falta de insumos ou atrasos burocráticos em aprovações públicas.
O entendimento consolidado do STJ reconhece a validade dessa cláusula, desde que ela esteja expressamente prevista no contrato, limitada ao prazo máximo de 180 dias e de forma clara para o comprador. A ausência de clareza ou justificativas concretas para sua aplicação pode configurar abusividade.
2. O caso analisado pelo STJ
Em julgamento, o STJ analisou situação em que uma incorporadora atrasou a entrega de unidades imobiliárias além do prazo contratual, mesmo após o período de tolerância de 180 dias. A empresa alegou que a cláusula autorizava a prorrogação sem ônus, mas o tribunal entendeu que a redação do contrato era genérica, sem explicitar os motivos técnicos que justificariam o atraso.
O resultado foi a condenação da incorporadora ao pagamento de lucros cessantes aos compradores, aplicando-se o entendimento do Tema 970 do STJ, segundo o qual o atraso na entrega do imóvel gera direito a lucros cessantes independentemente de prova do prejuízo, salvo se houver compensação contratual expressa e válida. Além disso, o STJ reafirmou o Tema 971, vedando a cumulação de lucros cessantes com a cláusula penal prevista no contrato, que pode inclusive ser invertida em favor do consumidor.
3. Riscos da má redação contratual
A decisão do STJ evidencia que a simples inserção de cláusula de tolerância não garante proteção jurídica à incorporadora. Quando a redação é vaga, omissa ou não estabelece critérios objetivos para a prorrogação, ela pode ser considerada abusiva e afastada pelo Poder Judiciário.
Entre os riscos enfrentados pela incorporadora, destacam-se:
Obrigação de indenizar por lucros cessantes pelo período de atraso, mesmo dentro do prazo de tolerância se não houver justificativa válida;
Possibilidade de inversão da cláusula penal, beneficiando o comprador;
Reconhecimento de danos morais em casos de frustração relevante da legítima expectativa do consumidor.
Esses riscos impactam diretamente o fluxo de caixa dos empreendimentos e a reputação da empresa no mercado.
4. Importância da redação técnica
A prevenção de litígios exige contratos bem estruturados, que descrevam de forma objetiva:
As hipóteses concretas de aplicação da cláusula de tolerância;
A limitação do prazo, em conformidade com a jurisprudência do STJ;
O cronograma detalhado de entrega e as penalidades aplicáveis em caso de atraso;
A necessidade de comunicação formal e documentada ao comprador quando a cláusula for utilizada.
A decisão do STJ reforça que a segurança jurídica em contratos de incorporação imobiliária depende não apenas da inclusão de cláusulas usuais, mas da precisão técnica e transparência com o consumidor.
Conclusão
A cláusula de tolerância é instrumento válido e útil para o equilíbrio dos contratos de compra e venda de imóveis na planta. Contudo, sua aplicação deve observar limites legais e jurisprudenciais, além de redigir-se com clareza, sob pena de resultar em condenações milionárias contra a incorporadora. A decisão do STJ reafirma a necessidade de atenção redobrada na elaboração desses contratos, reduzindo riscos de litígios e prejuízos financeiros significativos para as empresas do setor imobiliário.
Referências
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.729.593-SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Segunda Seção, por unanimidade, julgado em 25/09/2019, DJe 27/09/2019. Disponível em: https://scon.stj.jus.br. Acesso em: 1 ago. 2025.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Tema 970 – Recurso Especial Repetitivo. Lucros cessantes na hipótese de atraso na entrega do imóvel. Brasília: STJ, 2019. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/. Acesso em: 1 ago. 2025.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Tema 971 – Recurso Especial Repetitivo. Impossibilidade de cumulação de cláusula penal e lucros cessantes. Brasília: STJ, 2019. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/. Acesso em: 1 ago. 2025.
JUSBRASIL. Atraso na entrega de imóvel e cláusula de tolerância. JusBrasil, 2025. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/busca?q=atraso+entrega+im%C3%B3vel+cl%C3%A1usula+de+toler%C3%A2ncia. Acesso em: 1 ago. 2025.